quarta-feira, março 04, 2009



PINTADO DE FRESCO
O Senhor Chapelaria

Antunes Ferreira
O cavalheiro entrou-me no gabinete, previamente anunciado pela minha recepcionista e depois de uma pequena espera de três horas e meia. A consulta estava marcada para as sete da tarde e comecei a atendê-lo às vinte e duas e trinta e quatro (TMG). Prática, de resto, habitual e corriqueira na esmagadora maioria dos consultórios da nossa praça. Quem paga os euros é o cliente, perdão, o doente, donde é ele que espera. Ah, os homens são todos iguais, só que uns mais iguais do que os outros. Não me lembro quem disse isto, mas também não tem importância.

Já se aperceberam de que sou médico. Especialidade – psiquiatra. Exerço no Júlio de Matos, mas dou, ainda, consultas particulares. O que também é prática disseminada por aí. O trivial. O SNS é uma coisa porreira, mas o privado é mais rentável. Juntos, são excelentes. Para os clínicos, obviamente. Os consulentes não concordam, estou seguro. Mas, que fazer? Escolheram, pagam. Hoje em dia, a minha ajudante nem pergunta: é logo o recibo verde, que, por acaso, é cinzento. As Finanças são o que a gente sabe.

Até já podia estar reformado, mas essa estória dos anos de serviço que foram aumentados, lixou-me. Quando um cidadão pensava que já tinha direito a, logo veio uma nova lei a tramá-lo. Mas, nestas cenas, não há nada como realmente. Os anos vão custar a passar, mas passam. Na tropa, diziam «isso incha, desincha e passa». Bons tempos enquanto alferes miliciano. Mas, depois, foi a porra da nova chamada às fileiras, como tenente-coronel, milicianíssimo, claro. Havia falta de clínicos para acompanhar a carne para canhão.

O consultório é na Avenida Pêro de Alenquer, na placa da rua pode ler-se navegador. Na verdade, o que o tipo foi – foi piloto. Alto lá. Não tem nada a ver com o Lamy, esse é Pedro, já passou pela F1, hoje anda por outras provas e marcas. Só que o Pêro pilotava naus, nos finais do século XV, foi o condutor do Bartolomeu Dias a derrapar no Cabo das Tormentas, depois da Boa Esperança. E ainda foi o cidadão que dirigia a São Gabriel de um tal Vasco da Gama, não sei se conhecem. E o levou à Índia.

O Pedro é mais Le Mans e Nurbring, coisas dessas, depois da Lotus e da Minardi e começou no século passado, continuando neste. Não sei se tem nome de rua, de avenida não creio, mas quem sabe? Para não falar no Tiago Monteiro que também andou pela Fórmula 1, mas curou-se. A Diana Pereira, sua companheira e modelo, diz que ele não corresponde ao nome. O piloto, sabe-se lá por que bulas é Vagaroso… Para corredor auto, convenhamos que. Esclareço: Tiago Vagaroso da Costa Monteiro, nado e criado no Porto, de seu nome completo.

Um esclarecimento. Sou louco pelas corridas de automóveis, como já viram e estão a ver. Em puto conheci o Juan Manuel Fangio e o Stirling Moss, ases máximos do volante como então se dizia. Autógrafos são à patada. O circuito de Monsanto – um deslumbramento. Depois foi o Fitipaldi, o Senna, o o Jacky Ickx, o Villeneuve, o Piquet, o Mansell o Schumacher, o Alonso, o Hamilton … Cada maluco com a sua mania.

Bom, carregue-se na embraiagem para mudar de tema e volte-se ao paciente. Primeira consulta, ficha nova. Antes cuidadosamente manuscrita, ainda tenho muitas, hoje teclada em computas que tenho do lado direito da minha secretária. Porém, o homem parece-me um tanto nervoso. O que o trás por cá? Olhe doutor, é o meu nome. Ah sim? Já agora, diga-mo para eu o meter na ficha informatizada.

É justamente isso, doutor. Cheguei a director-geral num Ministério e agora o raio do nome ainda é pior!... Pior? Mas, não é o mesmo? É. Passo a explicar. Chamo-me Chapelaria da Moda, 124-126, Rua da Assunção, Lisboa. Esbugalho os olhos por trás das dioptrias. Como? Que disse? Ele, com um sorriso sardónico, o que disse é que me chamo Chapelaria da Moda, 124-126 Rua da Assunção, Lisboa.

Psiquiatra sim, mas tanto não. Mas como raio assim é? Ele, cada vez mais nervoso, eu quero que o doutor me passe um papel justificativo para ir ao Registo Civil mudar de nome. Um atestado de sanidade mental, uma certidão de como me encontro em plena posse das minhas faculdades mentais, uma papeleta dessas, para levar aos gajos.

Tudo bem. Mas, uma curiosidade, só… Já sei, doutor, já sei, sempre a eterna pergunta. Foi assim: o meu pai e a minha mãe (recordo que não havia televisão naqueles tempos) alguma coisa teriam de fazer para entreter as longas noites, em especial as invernais. Um tio-avô dizia que eram sim infernais. Mas bocas vilipendiosas sempre houve, há e haverá muitas. E o tio-avô foi pregar para outra freguesia, ainda que sem sotaina nem cabeção branco.

Assim, foram produzindo – filhos. E filhas, naturalmente. Tudo gente sã, naturais os sarampos, as bexigas, as rubéolas, os gânglios, as papas de linhaça, o xarope de cenoura, as inalações do Vick diluído em água quente, as aspirinas e já para o fim, a penicilina. Sim, porque a prole em escadinha já atingira os intes. Eram vinte e um. Até que vim eu ao Mundo. Um tanto serôdio. Pararam em mim, tinham chegado aos 22.

Havia nomes para todos os gostos, medidas e feitios. Dos corriqueiros António, Pedro, João, Maria, Paula, Leonor, até ao Moisés, Diocleciano, Epaminondas, Gertrudes, Florlinda, Gumerzinda, eu sei lá. E ao neófito, que nome lhe haviam de prantar. Estavam quase esgotadas as listas disponíveis tradicionais, o florilegium sanctorum caíra em desânimo depressivo, de tão solicitado.

Meu pai não foi de modas. Trouxe o seu chapéu de cerimónia, estilo Humphrey Bogart e cortou à tesoura uma série de quadradinhos de papel onde o pessoal escreveu as mais diversas sugestões de nome para o neófito. Meteram-nos na copa do sombrero e o mais novito que me antecedia, meu irmão Florimundo, na altura com quatro anitos incompletos, meteu a mão na papelada previamente embaralhada para que não houvesse batota.

O anjinho tirou o papel que agarrara em primeiro lugar e a Josefa, a mais velha, 28 anos, casada e divorciada, de esperanças sabia-se lá de quem, leu. E disse: o menino vai chamar-se Chapelaria da Moda, 124-126, Rua da Assunção, Lisboa. Valeu-me que naquele tempo ainda não existia o código postal, se não o nome compridote ainda seria mais longo. Topou, doutor? O Florimundozinho, tadinho, agarrara o rótulo do chapéu que, com tantas voltas e reviravoltas, se soltara do fundo da copa. Assim fiquei, assim me registaram, assim conseguiram os meus progenitores, católicos praticantes e tementes a Deus, que o prior Francisco me baptizasse. É tudo.

Eu seja ceguinho se não lhe passei cinco papeis diferentes, todos eles coincidente, desde o atestado até à certidão, passando pela declaração, pela informação e por uma recomendação. O homem nunca mais voltou. Mas, pagou a consulta, guardou o recibo para o IRS e só não esportulou o preço do papel selado, porque já não há. O Simplex é um grande avanço, nestas coisas administrativas e burocráticas.

NOVA «CABEÇA»
Esta nova «cabeça» precisa de explicação. As estórias que a integram desde hoje são mais velhas do que a Sé de Braga. Ou seja têm barbas maiores do que as do Dom João de Castro. Aos que as conheciam – as minhas mais sinceras desculpas pela melguice. Permito-me, porem, pintá-las de fresco. É assim.


(Também publicado no http://aminhatravessadoferreira.blogspot.com , no http://splichsplach.blogspot.com e noutros)

4 comentários:

Anónimo disse...

O António de Lobo Antunes chama-lhes "caça-níqueis".

Anónimo disse...

sorry, sem o de", é só António Lobo Antunes. Tudo de bom!

stériuéré disse...

Xiça.... já cá não vinha hÁ bués .... e deparo-me com isto tudo?????
Bom trabalho!!! Tudo de bom!!! ( heheheh agora que voltei hihihihi vou ser a xatinha de serviço outravez)

Anónimo disse...

Gosto muito de vir ao cuaoleu mas gosto mais do post aberto onde vale tudo.Beijo