domingo, março 15, 2009
SALADA DO DIA
Um violino na cama
Antunes Ferreira
… que, a bem dizer, ele nem era violinista. Arranhava as cordas do instrumento que, em certos momentos, protestava, com chiadeira pior do que dobradiça enferrujada. Em tais alturas, o arco só não disparava flechas porque não as tinha. Sebastião Mesquita, o que era – era bancário, numa agência no Conde Redondo. Porém, o seu hobby era a rabeca.
Coisa interessante: «A Rabeca» era um jornal de Portalegre, terra dos seus avós, onde até colaborara o José Régio. Mas que, pelos vistos, nada tinha a ver com as pautas, as claves e as semifusas. A música do periódico era outra. Não é que tivesse sido leitor habitual. Mas, recordava-se do velho Aníbal Mesquita recordando episódios de que a Censura permitira a publicação em letra de forma.
Adiante. Há um ano, promovido a gerente, fora colocado na Morais Soares. Má altura, já se navegava na crise, chegavam da Wall Street notícias preocupantes, o seu banco – seu, é forma de dizer, de uma gente naturalmente endinheirada e naturalmente complicada – estava a passar um péssimo bocado, mau era insuficiente, com os fiscalizadores à perna e os clientes em alvoroço.
Na agência, era ele quem pagava as favas. As pessoas, exaltadas, furiosas e, sobretudo receosas pelo futuro, descarregavam sobre os ombros do gerente, ou seja, ele, tudo o que lhes traziam as preocupações, para dizer a verdade, os medos. Bem se afadigava em explicações do que era inexplicável, bem tentava passar-lhe justificações – que não justificavam nada. Uma lástima.
Solteiro desde que viera ao Mundo, filho único, perdidos os pais uns anos atrás, não tinha ombro onde chorar as mágoas, sequer mesmo só para se encostar. Duas namoradas tinham ido à vida, uma descobrira que não gostava mesmo nada de violino, qualquer que fosse. Ao fim de quase seis anos, fora demasiado. A outra que se lhe seguira – pior. Ia a casa dela de quando em vez, para uma que outra bebida e pouco mais. Um dia, a empregadita abrira-lhe a porta e em pânico dissera-lhe que a menina não estava.
Mas estava. Descobrira-a na cama, lençóis pelo chão, um emaranhado de pernas, seios e pelos, com outra. Isso mesmo, outra. Se tivesse sido um, ainda poderia ter compreendido. Uma, é que era lixado.Recolhera a armação córnea indevida, que teimava em erguer-se, e recolhera a penates, jurando nunca mais se meter em tais trotes. Para mulheres, já lhe chegava. E como não tinha inclinação para os homens, fechara o postigo.
Restava-lhe o violino. Que, apesar das agressões de manuseio de que era vítima, pelo menos, nunca o atraiçoara, não era então que o iria fazer. Refugiara-se na caixa de ressonância, dedicara-se às cordas, acariciara o arco. No fundo, reconhecera que o amava, mais do que a outra coisa ou pessoa. Não era um querer platónico. Tocava-o, tocava-lhe e ele não protestava, sempre submisso, sempre à sua disposição, sempre empolgante. Adormecia, mesmo, com ele ao lado, estático, mas pronto a reagir a qualquer carícia musical.
Uns quantos meses idos, entrou-lhe um senhor de aspecto modesto, mas arranjado e simpático, na agência. A subgerente, que estava ao balcão, depois de ter trocado umas palavras com ele, chegou-se à secretária do Sebastião, ó Mesquita, o homem era canteiro, agora dono de um estaleiro em Pêro Pinheiro e quer um empréstimo. Tem gente que o abona. Leninha, tu sabes, isto está mau para crédito, ainda por cima pessoais. Mas, vamos lá ver o que o sujeito pretende exactamente.
Alongou-se a conversa - entre Senhor Fernandes e sente-se, vamos tentar arranjar-lhe alguma coisa. Senhor doutor, é a vida que me salva, a minha e a da família, cinco filhos ainda ganapos, o Senhor deve saber. Sebastião não lhe disse que não tinha descendentes, muito menos mulher, nem se referiu ao violino. O importante era ajudar o senhor Victor Fernandes a salvar-se e ao aglomerado familiar.
Passava na rua um funeral, a carreta carregada de doirados e do morto, coroas de flores, ramos envolvidos em papel de prata, fitas e laços a condizer. Não gosto, não vou nem a velórios. Mas o senhor doutor já se deve ter habituado a isto, é o caminho para o Alto de São João, até cremações lá fazem. Que sim, que se habituara, que nem era bom pensar, mas que ele, Mesquita, não ia nessas coisas. E não tinha jazigo. Para debaixo da terra, senhor Fernandes, para debaixo dos torrões.
Senhor doutor, que raio de conversa que eu havia de puxar. E, olhando à volta, para ver se a subgerente já se tinha afastado, o senhor doutor desculpe, mas é uma treta fodida. Pensemos noutras coisa mais positiva e menos arrepiante. Olha para o que me havia de dar. Se por acaso precisar de um pesa papeis em mármore de Estremoz, de uma fruteira em lioz branco, tenho muito prazer em ser-lhe prestável. E o crédito já a caminho, em bom ritmo.
Passados uns tempos, o senhor Victor ditava ao seu canteiro mais habilidoso os dizeres de uma lápide funerária. Em pouco mais de seis semanas, Sebastião Mesquita apagara-se.
Fora-se o amigo violino, depois do bancário ter tropeçado num cancro no pâncreas. Carcinoma ou algo assim, arrevesado, lhe comunicara o especialista no IPO, quando o senhor Fernandes lá o fora visitar, estava já nas últimas. Doença maldita, filha da puta.
Ó patrão, como é que se escreve esta porra estradivários? Joaquim, toma atenção, que o senhor doutor, paz à sua alma, bem a merece. É Stradivarius. S-t-r...
(Também publicado em http://aminhatravessadoferreira.blogspot.com/ e http://splish-splash.blogspot.com/)
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