quarta-feira, outubro 07, 2009

LINHASTORTAS

Trabalhadores

Antunes Ferreira
Nas traseiras da minha casa – apartamento, mais correctamente, um T3 às vossas ordens – existe um pátio cimentado comum aos três prédios que o envolvem. Tratando-se de um quadrilátero, explico que no lado restante há um murito com uma rede de altura suficiente para que as bolas passem a caminho da janela de uma igreja que ali está plantada. E uma ruazita faz a fronteira entre o pátio e o templo, mais mini.



A miudagem vai para lá jogar ao chuto. Por vezes nas canelas, mas não tem importância. Os meus netos, aos sábados e durante parte das férias, são dos mais entusiastas futeboleiros. As pessoas de mais idade, ou seja os cotas, ficam mais sossegadas. Pelo menos, a malta não vai para a rua ou para os charros. E, virtude suprema, os portões de acesso de cada imóvel à sede das jogatanas. E à sede dos briosos atletas. Por via disso, os frigoríficos têm lugares de primeira fila destinados às garrafas de abastecimento.

Um destes dias, vieram uns senhores de capacete laranja, protecção em conformidade com a normativa não-sei-quantos da UE, com uns rolos que, do longe de uns bons cinquenta metros, presumi serem projectos. Pelos vistos, eram. E engenheiros. Conversaram, fita métrica no chão, ai o vinco das calças, e chegaram a acordo. Deduzi, apesar da distância, que acabara a diligência. Foram-se em paz, fumando uns, abstinente o outro.

Dois a três dias depois, eis que surgem quatro briosos e denodados trabalhadores – ou antes, três mais um, que apenas orientava a obra e dava palpites – todos de cobertura craniana, desta feita azul (a diferença entre classes está bem ilustrada nesta policromia) e vá de destruir um terço, mais coisa, menos coisa, do pavimento. Os martelos pneumáticos tornaram-se-me música habitual e pouco celestial. Adiante.

Concluído o levantamento da superfície de cimento, isolamento em três camadas: plástico, no dia seguinte massa negra e finalmente esferovite. Passados mais dois dias, cuidadosamente verificada a textura do revestimento, tijolos, betoneira e adjacentes. A melodia era outra, menos destravada, mais uniformizada, que nisto de rotações em volta do eixo, as máquinas produtoras de betão pedem meças ao globo terráqueo. Eu, em frente do computador, no quarto transformado em escritório/biblioteca, seguia com curiosidade q.b., o desenrolar dos acontecimentos.

Um momento. Quando me refiro à duplicidade entre o antro da teclagem e as estantes livreiras, tenho de confessar que, destas, há uma profusão por estas bandas, carregadas de obras as mais diversas e enfeitadas na frente das lombadas por bibelôs e fotografias da família, em especial dos netos em várias etapas etárias e outros artefactos, entre os quais estojos, com tampas de vidro, de canetas, que colecciono desde que o meu Pai me ofereceu quando fiz com distinção a quarta classe, uma Parker 21.

A interrogação e a inquietação que me vinham ocupando uma boa parte da massa cinzenta fizeram detonar a pergunta. Quero aproveitar a ocasião para sublinhar que o despoletar tão em uso, até por pessoas ditas importantes é uma asneira da primeira ordem. Despoletar, reafirmo - não sei quantas vezes já o disse e escrevi - é tirar a espoleta a uma granada que, assim, fica inerme. Ou seja, não rebenta, nem puuuffff faz.

Fui-me à minha varanda, que dá para o recinto, e os obreiros, alisado o cimento final, erguiam um murinho diminuto, da altura de um tijolo deitado, à volta dessa parte terça do pátio. «Bom dia, podiam responder-me a uma questão?» Aproximaram-se. Perguntei-lhes o que era aquilo.

«Senhor, eu não saber, fazer só o que o patrom mandar». Ucraniano de boa cepa. E, ao lado «Senhor, ieu nu sabe, soi romaneste».
E o terceiro «Spassiba Senhor, mas nom sabe, niet». Russo – mas não de má pêlo, aliás basto e louro, de crista, à maneira. O quarto não estava de momento. «Ser angolês, Senhor, quando voltar vai dizer para falar Senhor». Tinha ido beber uma cerveja e descansar. Há momentos de sorte na vida dos homens. E posições.

E no portuganhês que usavam, lá foram tentando explicar-me que o patrom os arregimentava de madrugada, por baixo do viaduto do Campo Grande, e que eram, nos respectivos países, o ucraniano, contabilista, o romeno, geógrafo e o russo engenheiro-técnico electricista. Tinham vindo para cá em busca de melhores dias. Mas estavam a pensar em voltar; viviam os três num quarto com serventia para a casa de banho (vá lá), ali a Chelas. Um divã e dois sacos cama e disse. Os habituais dramas da imigração. As famílias haviam ficado lá.

Agradeci. «Spassiba, mulţumesc frumŏs e... spassiba». Voltei para o animal informático, a dizer para os meus botões que, afinal, a Senhora Laranja, quando criticara o TGV e o aeroporto de Alcochete não dissera mentiras a propósito de quem trabalhava na construção civil em Portugal. Estrangeiros... Na realidade, ela fora, apenas, chauvinista e segregacionista. Isto é, qualificativos desqualificativos. É a vida.

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(Também publicado em A Minha Travessa do Ferreira)

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