quinta-feira, novembro 12, 2009
DIKA SIM, DIA NÃO
De pescoço aberto
Antunes Ferreira
- Chefe! Foi encontrado um homem degolado, no Parque Mayer, ao pé do Capitólio. Se é que àquilo ainda se pode chamar assim, se bem que o raio do anúncio, aliás apagado, continue por lá. Mas, realmente, quem lá está é o cidadão de goela aberta.
O agente Martins, a caminho de subchefe, é um homem entroncado, sobre o baixo, a meio dos trintas, décimo segundo ano nas Novas Oportunidades, óculos de miopia, chefe de família apontado como exemplar, um casal de filhos, a mulher trabalha numa multinacional, mais precisamente no arquivo. Vivo, que o morto só na cave ou, mesmo, nos computadores.
- Repita lá, ó Martins… O quê, quem, como, onde?
O guarda encolhe os ombros. Seria a primeira vez que o Lopes se daria conta do que lhe estavam a comunicar, o espírito andava por longínquas paragens, alheado do espaço um tanto apertado da esquadra, ainda das antigas. E repete, devagar, quase soletrando as palavras que está lá fora um sujeito acompanhado de uma sujeita a comunicar o que ambos tinham encontrado.
- E então?
Então, o quê? - tem Martins ganas de perguntar. Mas o chefe é o chefe, distraído ou não, aluado ou ausente. Informa, simplesmente, que já mandou dois elementos para lá, está a caminho um terceiro, e que pensa que deve ser avisada a Judite, que o mesmo é dizer a Judiciária. Manuel Lopes, Manuel da Assunção de Maria Lopes, não gosta do nome, mas foi o que lhe plantaram na pia baptismal e no registo civil, faz que sim com a cabeça. «Concordo. Muito bem, proceda em conformidade».
Já o arvorado se volta a caminho da porta, «olhe lá, Martins, quero dar-lhe os parabéns…» Estranho, é a primeira vez que o superior o faz «… a propósito da sua promoção. Sai amanhã no Diário da República». «Desculpe, chefe, disse que?...» Sim senhor, tinha dito. Manuel Lopes, emergindo da névoa mental, levanta-se, dá-lhe um aperto de mão vigoroso e, pasme-se, um abraço a sério.
Não era sem tempo. Desde 2007 que a Associação tinha o caso entre mãos. O Sindicato mais importante dos polícias até à data tinha feito tudo o que era possível e, quiçá, o impossível para que o assunto não morresse numa das infindáveis gavetas da burocracia. Ou nos meandros labirínticos processuais. Mas, agora, aparecera o resultado. Favorável. Se calhar até com retroactividade. Depois se veria. O mais importante estava feito.
- Ouça, homem-de-Deus, talvez fosse melhor ser você próprio a ocupar-se desta traquitana. Para a entregar à Pê Jota. E, pelo caminho, acho que deve telefonar à sua esposa… O que real e naturalmente o Martins faz. Aconchegado pela alegria da Lena, num pulo, está lá, onde os três agentes já estenderam a fita de plástico branca e vermelha para impedir que os curiosos se aproximem da vítima.
Chega praticamente ao mesmo tempo que os tipos da PJ e o pessoal do INEM. Fotografam o corpo, tomam-se medidas, inquire-se o maralhal que por ali tem o seu modo de vida, das bilheteiras do que resta dos teatros, até ao guarda do estacionamento, incluindo no grupo, a gente dos dois restaurantes que vão lutando pela sobrevivência. As fotos, os flashes, a pesquisa de impressões digitais e de quaisquer outros elementos, sucedem-se, normais na anormalidade. Depois, é o levantamento do corpo – e ala que se faz tarde. Destino, morgue.
Mais tarde, já na esquadra, ficam a saber, ele e o chefe Lopes, que o morto era um prostituto conhecido por trabalhar na Avenida ou na Rodrigues Sampaio, nas traseiras do DN. Joaquim Oliveira Costa, 23 anos de idade, residente em parte nenhuma, último poiso conhecido em Olivais Sul, frequentador com clientes do Hotel Noite Rosa, o nome é esclarecedor, nenhum dos dois sabia que tal existia. O chefe não comenta, aparentemente ensimesmado, deve estar com a lua em quarto minguante.
Ao caso não é dada grande importância. Como rezava no dia seguinte a notícia com umas dez linhas, se tanto, «as averiguações prosseguem». Uns quantos, bastantes, muitos, membros da sociedade, mais destacados ou menos abonados, mas todos engatadores de homens (e que passam devagar nos automóveis deles, de grande cilindrada e pneus de rasto largo, rentes aos passeios na procura e na oferta do mercado da carne masculina), estão preocupados, amedrontados, borrados, impotentes.
O tema cairia facilmente no esquecimento, não fora o caso de umas três semanas depois ser descoberto no parque de Monsanto um travesti – nú e degolado. Aí as coisas começaram a fiar mais fino. Cerca de um mês ido, um senhor de posição, dirigente do futebol, encontrado em Marvila, pescoço aberto. Homem casado, três filhos, dono de empresa do ramo imobiliário, católico de missa dominical. Filiação política bem definida. Foi-se a ver, era invertido, ninguém diria, este é um Mundo Cão, já o Jacopetti dizia e filmava em 62, mais coisa, menos coisa.
O rebuliço aumentara desmesuradamente. Coisa estranha, dava-se conta o Martins. No meio de toda a balbúrdia, o Lopes impávido e sereno, nem pestanejava. Desinteressado. Não era nada com ele. A Comunicação Social em ebulição, o Poder entre a espada e a parede, não havia muito para dizer, mesmo nada, a não ser «as averiguações prosseguem e na altura devida serão dadas as informações». Travestis e gays cheios de pavor, queixavam-se amargamente de não poderem ganhar a vida honestamente.
E um dia, dois anos depois, quando já se pensava que a coisa ia prescrever, ela explodiu. O assassino era um ministro, «andava metido com maricas», de acordo com um auxiliar do seu gabinete. Conclusões sintéticas, as das autoridades. Interpelação parlamentar. Águas de bacalhau. O Lopes, entretanto, concorrera à Judiciária e fora aprovado, e o Martins, num verdadeiro salto de canguru já era chefe. E um dia, quando o candidato a inspector visitava a esquadra para matar saudades, virou-se para o Martins: «O meu irmão também é dos "deles". Mas, por favor, não diga nada a ninguém. Fica entre nós. Andava cheio de cagaço, ele – e eu também». «Pela saúde dos meus que a minha boca é um túmulo». E era.
(Tambem publicado em http://aminhatravessadoferreira.blogspot.com)
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1 comentário:
É preciso "ter estômago" para tamanha barbaridade. Já goela nem por isso!
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