sábado, novembro 07, 2009



Antunes Ferreira
Querem saber
uma coisa? A minha vizinha do oitavo frente comprou uma balança daquelas para a casa de banho - há quem as plante noutra divisória do apartamento, existe gente para tudo – para a qual, no domínio da condução há que tirar o brevet. Carta de ligeiros, mesmo que profissional, nem pensar. De pesados para cima de 18 toneladas, vá que não vá.

Subimos os três no elevador, ela, a balança e eu, e foi assim que tomei conhecimento da ocorrência. Uma caixa quadrangular, com marca e indicações especificadas para o manual de instruções em CD mas igualmente em suporte de papel. Design exterior apelativo e, pela reprodução do fiel instrumento, igual para o mesmo, no interior da embalagem. Não existia papel multicor pressupondo prenda, nem laço a condizer.



Face aos elementos disponíveis entre o terceiro piso negativo (na parede e no ascensor existe um – 3) e o meu, o quinto, depois de análise sintética mas aparentemente fundamentada, concluí que o objecto era para uso próprio da senhora, cujo nome sei por via da pequena etiqueta na caixa do correio. Laurinda da Purificação Alves, presumo que completo.

Nunca falei com ela, a vizinhança outrora tão loquaz é agora muda e queda. Ensimesmada, sorumbática, rarefeita. Ocasionalmente, a regra é quebrada por uma saudação, b‘dia, b‘noite, muito mais raramente b’tarde. As pessoas trabalham, ou dizem que, e por essa razão é mais difícil encontros a tais horas. Nem no hall da entrada, quanto mais no elevador.

Assim, limitei-me a fazer um sorriso e a desejar uma muito boa noite, bem soletrada para que a Senhora Dona Laurinda não tivesse dúvidas sobre a educação que os meus queridos pais me deram, a urbanidade e o civismo, que são igualmente meu timbre. E saí. Fora um dia c-o-m-p-l-i-c-a-do no escritório, a maldita crise dava azo a nervos em franja, a da Beatriz Costa – lembram-se? – não era nada, comparativamente falando.

Comentei o caso do ascensor e da balança que não cai (felizmente, nem um nem a outra) – o Erle Stanley Gardner que me desculpe o quase plágio – com a minha Etelvina. Que também chegara um pouco antes, da hidro-ginástica. «A mulher é um tanto avantajada, lá isso é, donde me parece ter sido uma boa compra» retorquiu-me a minha caríssima metade, enquanto metia um pronto a comer no micro-ondas, mais precisamente bacalhau à Braz producido en Vigo.



«Avantajada é favor; o que ela é, é uma baleia. Nem se queda pelo cachalote, é mesmo uma fêmea abonada, mas sem esguicho. Uma orca, quiçá». E acrescentei que ela até talvez precisasse de um computador para este lhe avaliar o peso... Satisfeito com a tirada, fui até à sala comum para dar uma volta na blogosfera. Intenção excelente, pontaria afinada, tiro falhado. O Quim estava grudado ao msn, o que, forçosamente, originava protesto contínuo da Lenita. O Mateus, no quarto, trocava xoxos informáticos com umas quantas amigas-prestes-a-ser-namoradas e vice-versa. A situação só tinha uma saída: delete e out.

Foi quando soou a campainha da porta. «Renato, vai ver quem é, que estou a fazer a sopa de pacote». Cumpridor, fui. Espanto: era a Dona Laurinda. «O senhor Costa – também tenho o nome pespegado na caixa das cartas com meio caminho andado no endereço, por que bulas não havia de ter? – desculpe, mas queria convida-lo a subir para ir ao meu apartamento…»

A Etelvina, ouvindo voz feminil, avançara igualmente. «Ao seu apartamento, minha Senhora?» com um tom entre a indignação e a censura descortinável a quilómetros de distância. «Pois sim, vizinha. É que não percebo nada da minha nova balança. É electrónica e as instruções são em inglês e em chinês. E não sei onde meter o disquinho. Por isso…»

Depois de recomendar calma, civilidade e paz aos três descendentes, lá fomos. E tomámos um uísque e um gin e petiscámos umas pataniscas de se lhes tirar o chapéu, depois de uns cajus picantes de lamber os beiços. A Laurinda (avançávamos no tratamento, ostracizámos a Dona) revelou que tinha um arroz de pato que só ela, o do Martinho da Arcada nem sombra lhe fazia. Se lhe quiséssemos dar umas dentadinhas… No arroz de pato, tá visto, o que é que estavam a magicar?

Fui lá abaixo avisar a malta, a única coisa que fazia falta, voltei a subir, sempre de ascensor. Eles estão ali, por vezes balançam, mas nunca caem, portanto há que lhes dar uso e justificar o condomínio, que, diga-se, não é barato. Abancámos. E eu, depois de uma aguardente velha – uma, não, duas. Ou terão sido três? - compenetrado e cortês até pus o instrumento a funcionar. A balança, óbvio. Não garanto que tenha escolhido o melhor programa, o caso não era fácil, muito menos as alegadas instruções. Entre o convívio e o procedimento correcto, não dava tempo.

Por vezes, uma Amizade que se presume eterna, começa numa balança. E pesa-se.

(Texto também publicado em http://aminhatravessadoferreira.blogspot.com, http://espelhosentido.blogspot.com e ligeiramente diferente do saído no SexoForte.net)

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