terça-feira, abril 13, 2010
ÀVOLTAKÁTESPERO
Até à morte
Antunes Ferreira
A coisa começara por um acaso, como muitas acontecem. O Chico Rodrigues, o Chico Chino, que a mãe era macaense, atravessava a Praça de Londres à boa e correcta maneira portuguesa, ou seja aos saltinhos e corridinhas nos intervalos entre as viaturas auto, quando um tremendo chiar de pneus quase lhe arrancou os… tímpanos. E, lembre-se, nos anos cinquenta, um engarrafamento era a soma aritmética de sete Anglias, dois Morris e cinco Citröen arrastadeiras.
De dentro do Isetta viera um qualificativo numa voz feminina de decibéis ao alto: sua besta! O Chino, que se conseguira equilibrar - pois a secante que estivera iminente transformar-se em tangente, sabe-se lá por que bulas – rodopiou numa pirueta inqualificável e olhou de frente o carrinho e a sua condutora. A miniatura era isso mesmo, uma auto-miniatura. A motorista era uma brasa. Assim mesmo, sem tirar nem pôr.
Do alto da sua peanha, o sinaleiro apitou duas vezes e com as mãos enluvadas de branco, fez um gesto clássico, circulem, circulem. Não havia sangue, havia só - segue. A fim de esclarecer devidamente a ocorrência, a Senhora encostou na berma do passeio e saiu para falar com o Chico, que, como se devem recordar também era Chino.
Vinha furiosa, mas mais encantadora assim, pensou o quase atropelado. «Então que fazia o Senhor no meio da avenida?» «Atravessava, minha Senhora.» «Mas tinha uma zebra mesmo ali ao lado. E elas são novinhas em folha, por cá…» E eram. Os cidadãos ainda as olhavam de viés, seria que aquilo iria funcionar, na estranja parecia que sim, mas por cá?
Se a PIDE se metesse no caso, com os seus métodos persuasivos, por certo que a gentalha passaria a utilizá-las, ainda que com algumas suspeitas, há praí cada maluco. Mas, era imperioso que se mantivesse a ordem de que o regime tanto se orgulhava. E bem. A menina Ermelinda, apanhadora de malhas nas meias até comentara que certos sujeitos aceleravam quando entravam nos cruzamentos, afirmando que o faziam porque havia na cidade «cada doido que entrava a correr nos cruzamentos!»
Segue-se que o Chico, que também era conhecido por Chino porque a mãezinha etc., enfrentou denodada e corajosamente a boazona cujo chapelinho quase caía tal a veemência e o agitar da dona, tal a censura da cabeleira dela, que, por acaso, era bem bonita, loira – quiçá falsa, mas que lhe ficava lindamente, lá isso ficava – e a carinha tão cheia de raiva que nem o Tokalon disfarçava o encarnado da exaltação.
Ele, tirando o chapéu castanho com fita marron, esboçou uma vénia, melhor, uma inclinação do espinhaço e apresentou as suas desculpas a Vossa Excelência, minha Senhora. «Menina, senhor distraído, menina. Solteira.» acrescentou ela, ainda furiosa. E ele, voltando à escusa, mil perdões, mas o mal estava feito e dele nem resultara quaisquer danos materiais, muito menos pessoais.
E apresentou-se, Francisco da Costa Rodrigues, um criado às vossa ordens, 28 anos, serviço militar cumprido, fiel de armazém e dizem que bom rapaz E a menina…,faz-me o obséquio, qual é a sua graça? Estava desarmada. O moço rondaria o metro e setenta e tais, desempenado, cabelo castanho de risca ao lado, brilhantina q.b.,bonitaço e escanhoado.
«O senhor Rodrigues tem cá uma lábia… Não bastou ter-me quase atropelado o carro que alem do mais é pequenino e já está a tirar nabos da púcara»? Que não, que era apenas curiosidade, raras vezes se encontrava um menina tão bonita, para ele era a primeira em que tal acontecia, ainda que por culpa dele, sempre fora um tanto despassarado… «Pronto, senhor Rodrigues, não se fala mais nisso. Maria da Graça Silva, dactilógrafa.» «Posso solicitar-me que me informe onde?»
O sorriso dela afugentou umas nuvens carregadas que enegreciam o céu, já pingava até uma chuvinha molha-tolos. Que não, que era apenas uma pergunta carregada de boas intenções, mas… gostava de saber… No Ministério das Finanças…» E foi cada um à sua vida. Só que na sábado seguinte, à hora da saída, o Chico que também era conhecido por Chino, o resto já sabem, estava plantado na esquina do Terreiro do Paço, com um ramo de rosas atrás das costas.
Já basta de paleio. Ano e meio depois, após muito lago do Campo Grande, de frequentíssimo Jardim da Estrela, de entusiasmante Fonte Luminosa, casavam na igreja de São Sebastião e começaram um matrimónio longo, dois filhos e uma filha, primeiro entusiasmante, depois entediante. E intimidante. Quem mandava era a consorte, ele amochava, ganhara-lhe respeito. Mais precisamente, medo. O Chico – ela nunca o tratou por Chino, ora queriam lá ver, a sogra era o que era, poucas confianças com a madama, essa sim chinesa – pagava as contas e pronto.
E numa tarde em Odivelas onde tinham ido por uma massada de cherne com gambas, o restaurante era do Magalhães, amigalhaço desde a Escola N.º 127 em Campo de Ourique, o Francisco da Costa Rodrigues lembrou-se de morrer, utilizando para o efeito um ataque cardíaco fulminante. A Funerária Lisbonense, do Martins, também compincha, encarregou-se de o levar aos Prazeres, pois o casal morava na Ferreira Borges, no terceiro direito herdado da mãe dele e com renda dos anos 40. Corria já 2001, passara o século, as voltas que a vida dá.
Graça respeitou, fidelíssima, a viuvez encadernada a negro, vá lá, uns casaquinhos de lã sobre o cinzento-escuro tricotados por ela própria. E três anos depois, um AVC deixou os filhos numa orfandade comedida, já era tudo sénior, embora as lágrimas ainda não pagassem imposto. De novo, os Prazeres, aliás denominação um tanto estranha para uma colecção de campas e jazigos nada a condizer com ela.
Virtuosa, subiu num jacto ao céu. Onde, na terceira nuvem a contar da esquerda para quem sobe, estava repimpado lendo o Notícias Celestial, harpa ao lado, adivinham quem: o Chino. «Meu amor, meu querido, de novo estamos juntos. Para sempre.» E ele, levantando-se e ajeitando a túnica: «Alto lá, o padre Joaquim só disse que era até à morte…»
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