quarta-feira, dezembro 16, 2009


ÀVOLTAKÁTESPERO

Bué de presépios

Antunes Ferreira
… E, entretanto, com a aproximação das Festas, há quem se dedique a coisas que não lembram ao diabo, salvo seja. Um exemplo. Cá em casa fazemos colecção de presépios. Que já são bué. De acordo com fontes bem informadas e que, além disso, fizeram uma laboriosa e atenta contagem, já são 417 (mais vaca, menos burro). Em cinco armários com paredes de vidro, como o PCP. Iluminados a preceito. Todos os Natais acrescentamos um que outro ao acervo. E, mesmo durante o ano…Por onde passamos, se vemos algo interessante, é tiro e queda. Óbvio, se houver euros, cada vez mais caros e raros.



Temo-los dos mais diferentes, das proveniências mais diversas, das dimensões mais variadas e dos estilos e materiais mais interessantes. Até um, boliviano, com a Senhora deitada na cama e com o ilustre rebento ao lado. Sentado, atento, reverencial e cuidadoso, está José, o primeiro pai putativo. Da História e do menino.

Este ano, e dado que a data se vai chegando a passos cada vez mais largos – curiosamente o Natal consegue calhar sempre a 25 de Dezembro, unanimidade que a Páscoa recusa, como o Mário Soares não aceitou a unicidade sindical da Inter – já começámos a pesquisa. E não é que ontem, em pleno centro comercial (não digo o nome por mor da publicidade, apesar do esforço do engenheiro Azevedo) nos deparámos com um de estilo centro -americano, colocado estrategicamente em montra apelativa?

Entrámos e vá de apreçar o nascimento. Uma menina com muito bom aspecto e um par de… olhos de fazer ressuscitar o Lázaro sem necessidade de qualquer intervenção jotacênica, abeirou-se e ondeou-se até nós. Tive a sensação de que a Raquel não tinha ficado muito bem impressionada, quiçá porque, para ela, o presépio era muitíssimo mais interessante. Eu, como frequentemente nestes casos, natural e obstinadamente mantive-me do outro lado da barricada.



A jovem, cujo decote era abertamente natalício, de acordo com a época, depois de questionada pela minha cara três-quartos, informou que se tratava de artesanato puro, do Peru, argila policroma, um encanto. Avalisada por marca do Governo de Lima, registada nas traseiras da manjedoura, o que é perfeitamente aceitável e justificável. Preço, não fora a das curvas a anuncia-lo, ter-me-ia causado, no mínimo um ameaço de enfarte. Mas, face às circunstâncias, até comentei que não era de todo despropositado. A Raquel franziu o cenho.

Aceitava, obviamente, dinheiro electrónico. Maquineta wireless, fatalmente. Paguei – quando toca a saldar contas, passo sempre do colectivo nós para o individual eu – com o famigerado cartão de débito. E o banco, renegando o Lehman Brothers, aceitou e debitou. A beldade sorriu, exibindo uns dentinhos prenunciadores de dentadinhas carinhozinhas, agradeceu, inclinando-se numa quase vénia. Só então reparei que, de cima, se descortinava que calçava graciosamente botas. Um panorama em profundidade, natalíssimo. Saímos com a sacrossanta família perfeitamente embrulhada e em saco plástico alusivo à época.

Chegados a casa, a nossa anja-da-guarda (que já faz parte da mobília e da família), a Conceição, a quem mostrámos o conjunto, não se conteve: «É lindo. O chinês lá ao pé de minha casa tem iguais. A oito euros e noventa e nove cêntimos, barato…» Nem digo quanto custou o que adquirimos. Mas congeminei para dentro de mim, que os olhos oblíquos do Li Wang, ou Ping, ou Hua, não se devia comparar, nem de longe, nem de perto, aos tais da nossa atendedora. E a Conceição, raios a partam, a insistir: «Claro, é made in China». O presépio. Feliz Natal.

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